domingo, 1 de abril de 2012

Alguém atravessa o mar?

Nascido na Beira, Mia Couto é o escritor moçambicano mais
traduzido, com livros publicados em mais de 22 países

"Viajei com um tradutor e era suposto ele ajudar-me. Quando ele se sentou ao meu lado, nas traseiras do jeep, o seu sorriso confiante contagiou-me e eu pensei: vai correr tudo bem. Saíamos para inventariar os bichos e as plantas na costa de Cabo Delgado. Mas não se chega nunca à Natureza a não ser pela mão do Homem. Daí a importância absoluta de obter depoimentos e recolher memórias de quem não apenas habita mas vive os lugares que nós, os da cidade, insistimos em chamar de “remotos”.

Durante dias, em Maputo, espreitei mapas e imagens. Há tanto que se pode saber antes mesmo de sairmos dos nossos lugares. Aliás, a viagem é como os namoros: começa antes, quando ainda tudo é sugestão. Saudade do tempo em que viagem era uma missão, uma busca de mistérios. Hoje, a velocidade trouxe vantagem, mas matou a duração, esse cadinho em que as viagens se convertiam em narrativa. Hoje deslocamo-nos sem chegarmos a sair de nós mesmo, sem transitar de certezas, sem perder o nosso chão original.

A viatura balança por picadas de areia paralelas à linha da costa. Quando chegámos à povoação, já a multidão se aglomerava. Os tambores para espalhar mensagens pertencem à História. Ou pertencem às representações folclóricas do continente africano. O tambor de agora é um telefone celular e está democraticamente distribuído por mulheres e homens de todos os cantos. A distância, nos dias de hoje, não é medida em quilómetros. Longe é quando já não há sinal de telemóvel. (...)"

Trecho da matéria “Alguém atravessa o mar?”, do biólogo, jornalista e escritor moçambicano Mia Couto, publicada na Índico, revista de bordo da LAM – série III, nº 11, jan/fev 2012.

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